terça-feira, 24 de julho de 2012

Às vezes é preciso ir, para se poder vir...





"O menino zangou-se. Sentiu-se abandonado, não considerado, ultrapassado e zangou-se mesmo muito. Fez imensos disparates em casa. Primeiro, dirigidos à irmã mais velha. Depois, à mãe, ao namorado da mãe e, quando, um dia, chegou ao limite do desespero, vestiu uma pele de lobo, que alguém lhe tinha oferecido quando ele era pequeno, e saiu a correr, pela mata que ficava atrás da sua casa. Não me lembro bem se a intenção dele seria só correr um pouco na mata, mas o certo é que não foi isso que aconteceu. Por sorte, ou por azar, ancorado junto a um lago encontrou um barco. Meteu-se nele e foi remando sem destino até que chegou a uma ilha. Inicialmente, julgou que ali não havia mais ninguém mas em breve percebeu que a ilha estava povoada de monstros. Monstros que praticavam as maiores crueldades. Depois de uma hesitação inicial, juntou-se–lhes. Com eles praticou também as maiores crueldades. Toda a espécie de destruição. E, embora percebendo que aquelas eram criaturas mesmo muito estranhas, seguiu-as por vários caminhos. Acabou por ser aclamado rei da ilha, gostou de ser rei, usou e abusou do seu poder, foi obedecido, elogiado e, passado algum tempo, detestado. A certa altura, percebeu que ali já corria grande risco de vida e resolveu vir embora. Meteu-se no barco, navegou durante meses ou anos, não se sabe bem. Mas um dia voltou a ver terra e retornou à sua cidade. Era noite escura. Todas as casas estavam com a luz apagada. Todas menos uma: a sua. Dirigiu-se para lá. A porta estava aberta. Entrou. Foi andando pé-ante-pé e quando chegou à sala viu que a mãe dormia, estendida no sofá. Ao lado, sobre uma mesinha, tinha deixado uma tigela de sopa: a sopa que costumava fazer ao menino quando ele estava doente. Ele aproximou-se, ajeitou os cabelos das têmporas da mãe, ficou a olhá-la e a pensar que, naquele momento, depois da longa ausência, a conhecia melhor. E continuou a olhá-la durante muito tempo e a perceber como gostava dela. Durante a estadia na ilha, tinha morto todos os monstros que o haviam impedido de perceber isso." in Sítio das coisas Selvagens

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